Sunday, November 06, 2005

Proletariado urbano-chic

>> Disco Pedido: Telegrama.Stop (wordsong)


Não me recordo qual foi o poeta americano ou inglês - e a diferença que habitualmente medeia entre uns e outros mede-se do Earl Grey para o Big Gulp - que nos recomendava a urgência de perdermos alguma coisa todos os dias.

Das chaves a um rio ou até mesmo um continente, enumeráva-nos a distância dos objectos, lugares e sentimentos que se perdem como quem tenta transmitir-nos - e através disso talvez convencer-se a si mesmo - a essência libertadora da perda. Das possibilidades que se abrem pela quebra do quotidiano lufa-lufa pré-programado "é das nove às cinco um dia apressado vai ser sempre abrir com Nestum sempre a meu lado" despoletado pela introdução do elemento disruptivo - em maior ou menor grau - que é a perda. Relembra-nos a impossibilidade do total e constante controlo sobre nós mesmos. Até porque "yo soy yo y mi circunstancia", já diz o by now clichet de Ortega Y gasset, e tudo é composto de mudança.

Mas nunca fui muito de perder as chaves-ai-que-estupida-agora-vou-ficar-na-rua; papéis-é-sempre-a-mesma-coisa-alguém-mexeu-na-minha-secretária ou sequer chapéus-de-chuva-nao-acredito-que-vou-apanhar-uma-molha. Acontece que mesmo até ao mais célebre control-freak o inesperado acontece. Porque a vida não pára de nos acontecer, fiquei sem carro nas últimas semanas. Não que o tenha perdido. Mas enfim, a perda não tem que ser concreta, pode sempre ser mais simbólica. Ou neste caso incómoda - perdi os privilégios do carro em virtude do seu estado comatoso.

Tornei-me assim mais uma forçada commuter no chega-para-lá, tira-o-bilhete-guarda-o-bilhete-e-volta-a-tirar-que-o-de-dez-viagens-é
-mais-barato, quotidiano do metro alfacinha (com síndrome de toupeira, a julgar pelo ímpeto com que esburaca a cidade nos últimos tempos). E não é que isso serviu para concluir que o tal poeta até tinha razão? Não que não soubesse. Mas Às vezes precisamos de nos confrontarmos forçosamente com as coisas para nos relembrarmos delas. A perda do carro libertou-me para a descoberta de umas quantas coisas novas, ou que, pelo menos, já não fazia há muito tempo.


Como imaginar as vidas das pessoas que habitam as gavetas de cada prédio. Ou que se cruzam comigo na estação.

Como calcorrear mais uns metros diários a pé - e, não obstante as chuvadas que traz o inverno, ou o frio que acompanha o cheiro das castanhas - redescobrir esse prazer tão revoltantemente simples de olhar lisboa.

Como descobrir os novos fenómenos urbanos. Como o proletariado urbano-chic.
- tem carro mas anda de metro
- anda de metro mas leva o Ipod
- leva o Ipod mas nem por isso não lê o jornal
- lê o jornal mas ouve música
- ouve música mas lê.
Logo pela manhã. Quando começa o dia.
Porque tem tempo. No metro. Porque perdeu o carro.

E já repararam quão rapidamente as comodidades se nos apegam por dentro, passando a dependências?

Mais que tudo, já repararam como as pessoas que habitam a cidade estão a ficar diferentes?

Ás vezes, se as observar de olhos semi-cerrados, em certas zonas, até parece que estou em Madrid.

Sinais de civilização para além da crise.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Tens q instalar aqui o lápis azul anti-spam!

7/11/05 1:00 PM  
Blogger Jordan said...

Finalmente tenho tempo pra ler tudoooooooooo!
Esta tarde vou-me dedicar ao teu blog :)))!
Vivaaaaaaaaa!

Já sobre o que escreveste - esta manhã perdi o meu carro por 40 minutos... Ponderei vir trabalhar de autocarro, pensei em apanhar um taxi (Alfragide é bem perto, mas para quem vem de transportes fica literalmente no fim do mundo!!!). Decidi-me pelo ataque - garagem comigo e problema resolvido! O Clio renasceu das cinzas!!

Sou uma tenrinha dos transps público - a mim não me verás a viajar de iPod... A n ser que me arranjem um bom emprego no centro de Lx :)))))

28/11/05 4:05 PM  

Post a Comment

<< Home