Gosto da minha cidade. do fumo do pó das obras de perder os olhos nos autocarros "83 Portela" outdoors "A Cila é que sabe" camiões "mudatudo.com mudanças para todo o país" e os ouvidos em conversas alheias da vizinha "parece que ele afinal anda com outra" da adolescente empedernida sentada no banco da paragem com o proto-moderno slip espreitando ameaçadoramente o mundo para além das calças "acho que vou ficar elas são muito simpáticas" ou a resposta da amiga da dita cuja "olha lá que já sabes: nem tudo o que luz é ouro".
Poesia urbana.
Quotidiana, como a vida. Assim mesmo. Sem a pretensão de rimar.
Pelo contrário: tem estado a gozar uma santa páscoa - na mais pura e crente acepção do termo. Que é como quem diz, armado em beato assustado pelas imagens dantescas de um Inferno escabroso ou do sangrento Cristo do Unamuno, tem seguido à risca as adendas à Bíblia do nosso (vosso) novo Papa e evitado os três novos pecados mortais:
1) utilizar a Internet 2) ler jornais 3) ver televisão.
Á terceira já estava, de resto, mais habituada. Agora quanto às outras duas, parece-me que trabalhar sem utilizar a primeira e sobreviver sem a segunda, nos tempos que correm se torna tão difícil como encontrar alguém que, de facto, tenha lido a Bíblia.
Essa é, de resto, umas das ocupações sugeridas pelo Santo (?) Padre em substituição das modernices tecnológicas e mentalmente mais (jornais) ou menos (televisão) estimulantes. Actividade cerebral só a da assimilação do conteúdo da Bíblia senhores. Resta saber se este exercício de memória inclui o Códice de Judas ou se nem por isso (eu cá tenho as minhas suspeitas...).
E porque é que será que isto me soa tão Calvinista?
à laia de prevenção, parece-me que as novas profissões deviam começar a exigir um novo subsídio - o de condenados à danação eterna. Bem, e condenada por condenada, acho que vou ali mas é comprar o jornal.
Ás vezes são precisas lentes para quebrar os filtros de vidro em que se reflecte a realidade. Os óculos são prismas de luz, capazes de decompôr essa, à primeira vista, única verdade branca, em todo um espectro de cor, metáfora de diversidade.
A omelette tem o sabor das coisas simples. Palavras que se mordem, sumarentas por dentro como cerejas de cor. Por isso trouxe-a para perto do que digo. Na proximidade indizível das letras em onda curta.
"you are beautiful and you are alone *
ninguém te nota os passos se passares sempre, como o tempo. e é como quando tens vontade de chorar - finges sempre que não queres, mas sabes que vais gostar.
Os políticamente correctos/eufemísticos chamam-lhe "ecletismo" Os main stream reagem, rindo, com comentários na linha de "só gostas de coisas esquisitas!", afirmando orgulhosamente a previsibilidade dos seus hábitos e gostos. Os anti-main stream reagem, rindo, mas de forma discreta, sarcática e com laivos de complexos de superioridade, afirmando orgulhosamente os seus igualmente prevísiveis hábitos e gostos.
No meio, o ecletismo. Tenho a dizer que não sou eclética ou sequer antagónica.
O problema é mesmo esta minha emotividade kitsch em conflito com uma estética high culture.
Sob o fio da navalha do estereótipo de consumo cultural, mais uma indefinida caminha.
Não gosto de esterótipos. Seja de que tipo forem. Já vos tinha dito. A liberdade de escolha, como a vida, não cabe em etiquetas.